Home Tênis Em 08 de junho de 1997, Guga chocava o mundo do tênis

Em 08 de junho de 1997, Guga chocava o mundo do tênis

Enfrentando os três últimos campeões de Roland Garros no decorrer da competição, Guga se tornou o primeiro brasileiro no tênis masculino a conquistar um Grand Slam

Thiago Chaguri
Apaixonado por esporte desde criança, acompanho diversas modalidades por acreditar na magia e nas boas histórias que seus protagonistas e torcedores proporcionam. Além do entretenimento, admiro também as pluralidades táticas e estratégicas.

O mundo do tênis presenciava em Paris, no dia 08 de junho de 1997, o nascimento de uma estrela: Gustavo Kuerten. Número 66 do ranking mundial à época, com apenas 20 anos e planos de alcançar o top 50 até o final da temporada, Guga chocou o esporte ao sagrar-se campeão de Roland Garros, um dos quatro Grand Slam do circuito.

Em apenas duas semanas sua vida e patamar mudaram radicalmente. De atleta desconhecido – que por vezes ligava à cobrar para jornalistas de Florianópolis, sua cidade natal, para informar seus bons resultados e pedir notas nos jornais – à um novo possível ídolo do esporte brasileiro, com direito a interrupção na programação da Globo através do famoso “Plantão” para dar a notícia do título.

PUBLICIDADE

Suas icônicas bandanas só não chamavam mais a atenção do que a extravagante camisa listrada pelas cores azul e amarelo. Com esse outfit digamos, “discreto”, o “Manezinho” enfrentou nomes consagrados na quadra principal, a Philippe Chatrier.

Kuerten venceu os três últimos campeões da competição. Eliminou Thomas Muster, vencedor em 1995, na terceira rodada. Pelas quartas-de-final, passou pelo então detentor do troféu, o russo Yevgeny Kafelnikov. Para dar ainda mais brilho e exaltar a competência de sua conquista, despachou na final o espanhol Sergi Bruguera, campeão das edições de 1993 e 1994.

PUBLICIDADE

Este foi o primeiro de seus três títulos no saibro sagrado francês. Três anos depois o carismático tenista brasileiro voltou a faturar o torneio de forma consecutiva, nos anos de 2000 e 2001.

CAMPANHA

1ª RODADA

A estreia ocorreu contra o tcheco Slava Dosedel, adversário que havia o derrotado duas vezes no ano, incluindo o Masters 1000 de Monte Carlo um mês antes do início de Roland Garros. Durante a partida, Dosedel sentiu o ombro e seu saque foi prejudicado. Guga se aproveitou e, em 1h35, fechou o jogo em 6/0, 7/5 e 6/4.

2ª RODADA

Em sua segunda exibição encarou Jonas Bjorkman, que ocupava a posição 23 do ranking. Em duelo equilibrado, o catarinense precisou de sete match points para finalizar a partida. Em 2h37 de jogo, venceu com parciais de 6/4, 6/2, 4/6 e 7/5.

3ª RODADA

Pela primeira vez na carreira de simples, Guga enfrentaria um top 5 do circuito. Thomas Muster, campeão de Roland Garros em 1995, até então nunca havia perdido para um tenista acima da posição 50 do ranking na competição.

PUBLICIDADE

Em um primeiro set disputadíssimo, Muster abriu vantagem e venceu o tie-break por 7/6(3). Kuerten surpreendeu e voltou para a parcial seguinte jogando com maestria. Variando bastante seus golpes, ora despejava potência, ora deslocava o adversário para os lados, induzindo-o à situações desconfortáveis. Sem respostas para a tática imposta pelo brasileiro, Muster, no auge de sua irritação, soltou uma frase marcante: “Este garoto está me matando. Quem é ele? Um gênio?”. O número 5 do mundo parecia perdido em quadra. E, de fato, mal viu a cor da bola no set, finalizado em impressionante 6/1 para Guga.

Mantendo sua variação no terceiro set, Gustavo Kuerten aplicou 6/3 e tomou a frente do placar. Na quarta parcial o austríaco se recompôs psicologicamente e imprimiu bom ritmo. Devolveu o 6/3, empatou o jogo e manteve-se vivo na disputa.

DO ALERTA AO ALENTO

No quinto e derradeiro set, Muster parecia que tinha retomado definitivamente o controle. Abriu 3/0 e viu seu adversário desesperançoso. Guga foi para o banco durante a troca de lado e desabafou para seu técnico Larri Passos e seu irmão Rafael, acomodados na tribuna, que estava esgotado e não tinha mais chances. Rafael era um homem muito calmo e ponderado. Desta vez, porém, tratou de dar um chacoalhão em seu irmão e o encorajou a não desistir da partida.

Esta atitude reacendeu a chama do brasileiro, que voltou a exibir o excelente nível do segundo set e arrancou o empate em 3/3. Sua reação deixou Muster perplexo. O austríaco até levou o sétimo game, entretanto, dali em diante, o florianopolitano ganhou o apoio e a simpatia da torcida francesa e tomou o controle do jogo. Venceu três games seguidos, fechando o set em 6/4 e o jogo em 3 sets a 2 para avançar às oitavas-de-final, em 3h28.

PUBLICIDADE

Após os cumprimentos em quadra, Guga subiu as arquibancadas para abraçar e agradecer seu irmão pelo incentivo, que considerou fundamental para sua virada de astral.

OITAVAS-DE-FINAL

Andrei Medvedev, número 20 do ranking, era o adversário da vez. O ucraniano chegou confiante para o embate, pois havia recém-conquistado o Masters 1000 de Hamburgo e vencido dois top 5 durante a temporada.

Curiosamente, o jogo durou dois dias. O fim do crepúsculo vespertino interrompeu a partida, pois a quadra ficou sem luz natural.

Medvedev saiu na frente e venceu um primeiro set apertado por 7/5. Guga não se abalou e voltou arrasador. Muito efetivo e preciso em suas “marretadas”, sufocou o adversário nas duas parciais seguintes, passando por cima com 6/1 e 6/2.

PUBLICIDADE

Já no quarto set, Kuerten abaixou a guarda e Medvedev, inspirado, não deu chances para o brasileiro. Aplicou 6/1 e levou a partida para a parcial decisiva.

A INQUIETUDE DE UM JOVEM

A interrupção pelo motivo citado acima ocorreu no quinto set. Ansioso, Guga relata que dormiu pouco durante a noite, porém acordou com muita adrenalina para finalizar a partida.

Retornando na manhã seguinte a partir do 2/2, o equilíbrio permaneceu até o fim. No 4/4, Medvedev tinha um 0-40 à seu favor. Bastava apenas um ponto para quebrar o saque do brasileiro e ter a chance de servir para fechar o jogo. Mas Guga foi valente. Destemido, partiu para o tudo ou nada e “desceu o braço”, salvando de forma incrível os três break points para se recuperar e posteriormente vencer o game.

Apesar de sofrer o empate em 5/5, Guga confirmou seu serviço e quebrou o saque posterior de Medvedev para ganhar o set por 7/5 e a partida em 3 sets a 2.

PUBLICIDADE

QUARTAS-DE-FINAL

Pela primeira vez na carreira, Guga jogaria na quadra principal, a Philippe Chatrier. No lado oposto da rede estava o número 3 do ranking e campeão da edição anterior de Roland Garros, Yevgeny Kafelnikov – ou “café no copo”, como o descontraído Manezinho apelidou o russo em uma brincadeira.

Arrasador, Guga não tomou conhecimento no primeiro set. Colocando muita força em seus golpes, sufocou o oponente e fechou a parcial em 6/2.

O segundo set foi parelho, mas Kafelnikov usou de sua experiência e golpes certeiros para fazer 7/5 e empatar o jogo.

Já na terceira parcial, Kafelnikov atropelou e devolveu o 6/2 sofrido no primeiro set.

PUBLICIDADE

No entanto, o que poderia ser um calvário para o brasileiro, que sentia-se exausto e dolorido, o quarto set transformou-se em sua redenção. Gustavo Kuerten mudou totalmente sua postura. Confessou, em sua autobiografia, entrar sem planos em mente para aquele momento. Relatou que naquele set sentiu-se menos tenso e mais relaxado. Isso o ajudou a retomar as esperanças e partir para cima do russo. Ao abrir 3/0, percebeu que seu adversário apresentava sinais de cansaço. Sendo assim, passou a acelerar seus golpes e aplicou um espetacular “pneu” (expressão usada no tênis por quem vence um set por 6/0) e forçou a quinta parcial.

O JOGO DE  “XADREZ” NA QUADRA

Kafelnikov tentou frear o brasileiro jogando “xadrez” em quadra. Experiente, tentava desgastá-lo física e psicologicamente se defendendo muito bem. Muito equilibrado e focado, Guga conseguiu sobreviver à tática e, com 5/4 no placar, teve o saque à seu favor para finalizar a partida.

Esse momento crucial exige muita força mental para o tenista. É a hora que o adversário tenta o impedir de todas as maneiras. Para quem serve, é fundamental ter a cabeça no lugar para lidar com a pressão.

Aos 20 anos e na iminência de sua primeira semifinal de Grand Slam, o jovem se viu contra a parede. Kafelnikov estava à frente no game por 30-40, prestes a quebrar seu serviço. Com a chance de devolver um saque fraco do brasileiro, o número 3 do mundo teve a faca e o queijo na mão. Mas, o que parecia fácil, virou dificuldade.

PUBLICIDADE

O russo mandou a bola longe e permitiu a igualdade. Dali em diante, Guga ganhou confiança, se impôs e colocou números finais na parcial em 6/4 e ao jogo, com mais um 3 sets a 2 na bagagem, levando o público presente ao delírio após 2h30 de uma grande exibição.

SEMIFINAL

Este encontro marcou um dos confrontos mais surpreendentes da história em fase final de Grand Slams. Kuerten, que figurava na posição 66 do ranking, encarou Filip Dewulf, número 122. O belga também bateu nomes conhecidos para chegar à semifinal.

Já pela segunda rodada, eliminou Fernando Meligeni por 3 sets a 2. Nas oitavas-de-final deixou para trás Magnus Norman, sueco que viria a ser vice de Guga em seu bicampeonato de Roland Garros, em 2000. O espanhol Alex Corretja, cabeça de chave número oito, foi a vítima nas quartas-de-final.

Pela primeira vez na competição, Guga entrou como favorito. Afirmando sua nova condição, atropelou no primeiro set, vencendo por 6/1. Abriu 3/1 no segundo, mas acabou se atrapalhando com a ventania. Como adotara a estratégia de um jogo mais intenso despejando potência nos golpes, sua precisão diminuiu e acabou se desconcentrando. Dewulf contou com muitos erros do adversário e venceu cinco games consecutivos, levando a parcial por 6/3.

PUBLICIDADE

O PASSAPORTE PARA PARA A GLÓRIA

Guga recuperou-se. Como no primeiro set, impôs seu forte ritmo e aplicou novamente um expressivo 6/1 no terceiro. Já o quarto set foi muito disputado. Nenhum dos tenistas abriu distância no placar. Ambos atuaram em alto nível. Dewulf não tinha mais nada a perder e elevou seu jogo, acertando bolas difíceis. O brasileiro manteve sua boa atuação, mas ao abrir 5/4 e ter a possibilidade de sacar para a vitória, sentiu a pressão do momento. Kuerten confessa que tremeu e ficou tenso, pois era a primeira vez que estava em uma semifinal de Grand Slam e com a torcida à seu favor.

Assim, Dewulf cresceu. Não somente quebrou o serviço, como virou o set para 6/5. Irritado, Guga gesticulava impacientemente diante daquela situação. Com a troca de lado após o game, sentou-se no banco, acalmou-se e voltou melhor. Empatou a parcial e levou ao tie-break. Mais equilibrado emocionalmente, manteve a cabeça no lugar e, em 2h14, triunfou por 3 sets a 1, com parciais de 6/1, 3/6, 6/1 e 7/6(4).

Com esta vitória, Gustavo Kuerten tornou-se o primeiro brasileiro na história do tênis de simples masculino a disputar uma final não somente de Roland Garros, como de Grand Slam.

Contabilizando o naipe feminino em simples, o Brasil não tinha um representante em final de Major desde 1966, quando Maria Esther Bueno conquistou o título do US Open e o vice em Wimbledon.

PUBLICIDADE

FINAL

Gustavo Kuerten estava muito confiante para o, até então, maior dia de sua carreira. Antes do jogo, um carro do torneio foi buscá-lo no hotel para levá-lo ao complexo de quadras da competição. No banco do passageiro havia um cameraman designado para filmá-lo. Envergonhado, Guga fingia estar conversando coisas importantes com seu técnico Larri Passos. Ao sair do veículo, outra equipe de filmagem aguardava sua chegada para registrar seus passos até o vestiário. O privativo local permitia a presença apenas dos jogadores, treinadores, do chefe dos fisioterapeutas e de mais dois massagistas.

A HORA DA VERDADE

Ao adentrar à quadra, Guga sentiu a sensação de que iria ganhar o jogo. Não se intimidou mesmo sabendo que seria uma parada complicada. Bruguera já havia sido campeão de Roland Garros em 1993 e 1994. Na primeira oportunidade, derrotou o lendário Jim Courier na final. Ou seja, o espanhol estava acostumado com o ambiente decisivo. Além disso, no ano anterior havia faturado a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Atlanta, perdendo a final para um dos maiores de todos os tempos, Andre Agassi.

Compenetrado, Guga jogou com muita intensidade no primeiro set. Ainda que Bruguera atuasse à seu estilo, usando muitos efeitos e explorando o fundo de quadra, Guga estava forte, destruindo o jogo reativo de foco no erro e cansaço que o adversário tentava propor. Assim, Kuerten fechou a primeira parcial em 6/3 e largou na frente.

Bruguera havia perdido o primeiro set em suas três partidas anteriores e apegou-se ao fato para ganhar confiança e conseguir uma reviravolta. O espanhol mudou sua tática e colocou força em seu jogo, buscando mais as linhas de fundo com bolas rápidas. No 4/4, teve a chance de abrir vantagem e ter o saque à seu favor. Essa agressividade, contudo, lhe custou caro. Bruguera desperdiçou dois break points e Guga recuperou-se, vencendo o game. Na sequência ainda quebrou o serviço do adversário, finalizando em 6/4 e abrindo 2 a 0 no jogo.

PUBLICIDADE

É CAMPEÃO!

A expressão de Bruguera era de frustração. Depois do desperdício da chance de virar o set anterior, o espanhol se desconcentrou. Sentia que tudo o que tentava, de nada adiantava. Por outro lado, Guga estava cada vez mais confortável e seguro. Após o brasileiro acertar uma devolução difícil na linha, Bruguera virou-se para seu estafe inconformado, sem enxergar uma saída. Realmente, o bicampeão estava encurralado.

Confiante, solto e inspirado, Guga atropelou na terceira parcial. Aplicou um sonoro 6/2 e, em apenas 1h50, fechou sua excelente atuação conquistando Roland Garros pela primeira vez, tornando-se uma das maiores surpresas da história do tênis.

Campeão, estava sem acreditar em seu feito. Após receber os cumprimentos e abraço de Bruguera, saudou seus familiares e foi efusivamente aplaudido por mais de 15 mil pessoas presentes na quadra Philippe Chatrier, que, apesar de incrédulas, estavam também empolgadas por tal façanha.

De boné com a aba virada para trás, antes de subir ao palanque para a premiação, bateu a sola de seus tênis para tirar o saibro e subir para a cerimônia. Fez um sinal de reverência a um dos maiores jogadores de todos os tempos, Bjorn Borg, seu ídolo, que entregou-lhe o troféu. Guillermo Vilas, outro nome de alta relevância do esporte, o abraçou e o parabenizou pelo título, gesto também repetido pelo presidente da Confederação Francesa de Tênis.

PUBLICIDADE

O RESPEITO, A GRATIDÃO E A COMEMORAÇÃO

Durante a entrevista pós-cerimônia, Guga fez questão de dedicar o troféu à seus familiares e à seu treinador, Larri Passos, que considerava como um pai. Após todo o protocolo da cerimônia, emocionado, foi abraçar sua mãe, irmão e sua “oma”, que era o modo como chamava sua avó.

Fora do complexo, músicos brasileiros organizaram uma batucada para saudar Guga, que abriu uma champanhe com Larri e comemorou, com muita justiça, o primeiro título de Grand Slam de uma carreira que viria ser a mais vitoriosa de um brasileiro na história do tênis profissional masculino de simples.

LEIA MAIS:

Naomi Osaka desiste de Roland Garros

Os 1000 jogos de Serena Williams: admiração e lamento pelo fim próximo de um ícone

PUBLICIDADE