Home Futebol O que é a tal da “Zona 14” citada por Tite e o que isso tudo tem a ver com o jornalismo esportivo

O que é a tal da “Zona 14” citada por Tite e o que isso tudo tem a ver com o jornalismo esportivo

Na coluna PAPO TÁTICO, Luiz Ferreira explica a relação entre futebol e ciência e reafirma a urgência na mudança de mentalidade de boa parte da imprensa

Luiz Ferreira
Produtor executivo da equipe de esportes da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, jornalista e radialista formado pela ECO/UFRJ, operador de áudio, sonoplasta e grande amante de esportes, Rock and Roll e um belo papo de boteco.

A intenção de se fazer esta humilde reportagem nasceu da reação de vários jornalistas (alguns colegas deste que escreve) às palavras de Tite quando este se referiu à chamada “Zona 14” durante o anúncio da lista de convocados para as partidas contra Venezuela, Colômbia e Uruguai pelas Eliminatórias da Copa do Mundo. O treinador da Seleção Brasileira foi acusado de ser “bitolado”, “chato” e de outros adjetivos impublicáveis nesse e em momentos em que utilizou termos mais técnicos. É preciso dizer, antes de mais nada, que a intenção aqui é fazer com que todos tenham acesso ao conhecimento e aos conceitos trazidos por Tite e também mostrar como o futebol tem se aproximado cada vez mais da ciência. Acima de tudo, realizar o trabalho que deveria ser dos JORNALISTAS ESPORTIVOS. A rejeição ao conhecimento, ao estudo e ao aprimoramento é algo que faz sim parte da nossa sociedade não é de hoje. E é exatamente por isso que essa reportagem se tornou tão necessária.

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Tite citou a “Zona 14” quando Guilherme Pereira (repórter da TV Globo) o questionou sobre o retorno de Philippe Coutinho aos gramados e o papel que ele desempenhava na Seleção Brasileira. A resposta do treinador foi a seguinte: “Pergunta tática, resposta tática. Quando a gente fala, academicamente falando, na zona 14 ou praticamente falando o meia ponta de lança, o meia criativo, as duas posições, ele é um desses jogadores. Neymar é um desses jogadores. Paquetá é um desses jogadores. Everton Ribeiro é um desses jogadores. Claudinho é um desses jogadores. (…) Quando a gente procura também trazer essa criatividade maior, a gente busca jogadores que tem essa característica para emprestar. Não adianta tu ficar na teoria. Esses jogadores emprestam essa condição.

A própria foto de capa desta reportagem ajuda a explicar o que é a tal “Zona 14”. Trata-se da entrada da área, o “funil” como ficou conhecida aqui no Brasil. O termo foi criado em 1999 por cientistas da Universidade John Moore, em Liverpool. Eles dividiram o campo em 18 pedaços e mapearam todas as chances de gol dos semifinalistas da Copa do Mundo da França e descobriram que 70% dos passes decisivos e 25% dos gols tinham a mesma origem: a “Zona 14” ou “Golden Zone”. É nesse setor que o time encontra sentido para a posse de bola e desorganiza as defesas ao invés de trocar passes de um lado para outro. Vale lembrar que essa descoberta foi motivada por ninguém menos do que Zinedine Zidane. Os pesquisadores Tom Reilly e Mark Williams perceberam que o melhor jogador do Mundial de 1998 sempre ficava pela “Zona 14″ quando não tinha a bola nos pés. Desse modo, o craque francês tinha condição de surpreender os adversários e confundir os zagueiros com passes precisos ou arrancadas na direção do gol.

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Tom Reilly e Mark Williams voltaram para a França dois anos depois de publicar o estudo na revista New Scientist e notaram que que incríveis 81,3% das assistências para gol na campanha vitoriosa na Eurocopa de 2000 vinham da mesma “Zona 14”. Estava mais do que claro que ter jogadores capazes de explorar bem essa faixa do campo era a marca registrada das maiores equipes da história do futebol. É por isso que Tite utilizou o termo “Zona 14” e falou da importância de se ter no elenco da Seleção Brasileira jogadores que pudessem explorar os espaços da “Gondel Zone”. Peguem os melhores momentos dos jogos da França na Copa do Mundo de 1998 na Eurocopa de 2000 e será fácil de comprovar a tese dos pesquisadores. Zidane ocupava aquela região como poucos e deixou um legado inestimável para todos os que vieram depois dele. Não foi por acaso que o argentino Lionel Messi mostrou quem realmente era para o mundo quando passou a ocupar mais a “Zona 14” com Guardiola e outros treinadores.

Zidane era visto com frequência na “Zona 14” durante a Copa do Mundo de 1998. Não foi diferente atuando contra a Seleção Brasileira na histórica vitória da França por 3 a 0 na final. Foto: Reprodução / FIFA TV

Equipes como o Barcelona de Pep Guardiola e o Manchester United campeão da Champions League em 1999 possuíam altos índices de passes e de utilização da “Zona 14”. O bom uso dessa faixa do campo implica diretamente em passes para a frente (uma das grandes especialidades de Zidane na França, na Juventus e no Real Madrid) sempre na direção do gol. Até mesmo quem finaliza bem de média distância pode se valer do posicionamento no “funil” para fazer seus golzinhos. É por isso que Tite busca esse tipo de jogador que tinha em Philippe Coutinho e agora tem em Everton Ribeiro, Neymar e vários outros. E se formos passar para o futebol feminino, é impossível não se lembrar da atuação de Marta atuando exatamente nessa faixa do campo como uma autêntica “camisa 10” sem obrigações na marcação e com muito mais liberdade para distribuir passes ou finalizar a gol. A goleada sobre a Argentina no dia 20 de setembro mostra muito bem como a “Zona 14” fez bem para a nossa Rainha e para a equipe de Pia Sundhage.

Marta recebe na “Zona 14” e tem liberdade e tempo para escolher o passe em profundidade ou a finalização a gol. Imagens: Reprodução / SPORTV / GE

Fato é que a chamada “Zona 14” sempre foi um dos caminhos mais rápidos para se chegar ao gol adversário. É o ponto do desequilíbrio. E o segredo está no posicionamento correto sem a bola. Tomando os exemplos citados por Tite, Everton Ribeiro, Neymar, Philippe Coutinho, Lucas Paquetá, Claudinho e vários outros são jogadores que sempre gostaram de buscar o espaço vazio e se transformam em “vultos” para os adversários que precisam se virar para conter o avanço pelos lados do campo. Pode ser “camisas 10” de fato ou volantes com chegada constante no ataque. Mais centralizados, todos eles escapam do combate direto dos laterais/alas adversários e correm menos risco de ficarem completamente “encaixotados” na marcação. Mas não estamos falando de algo novo. A “Zona 14” foi palco principal dos grandes jogadores da história da modalidade. Messi virou uma lenda jogando ali. Maradona e Cruyff destruíam seus adversários ocupando aquela faixa do campo. E Pelé foi o maior de todos os tempos explorando a “Zona 14” com maestria.

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Pelé se transformou no maior de todos os tempos desfilando a sua genialidade quase extraterrestre na “Zona 14”. Imagens: Reprodução / YouTube / FIFA TV

Se Tite quis “falar difícil” ao utilizar termos mais técnicos, isso não cabe a ninguém julgar. Certo é que cabe aos JORNALISTAS ESPORTIVOS a tarefa de explicar aos ouvintes, telespectadores e leitores do que se trata cada expressão e cada ideia colocada por qualquer treinador. O futebol é de quem está no campo e de quem o pratica todos os dias. E querer monopolizar o debate só porque não gostou da fala mais rebuscada deste ou daquele profissional (ou porque não faz a mínima ideia do que se trata, mas não quer que ninguém saiba) não parece ser a decisão mais justa e sensata. O velho e rude esporte bretão está cada vez mais próximo da ciência embora ainda mantenha sua aura de improviso e de magia intactas. Difícil entender como jornalistas sérios (ou que se dizem assim) preferem ridicularizar aquilo que não sabem e diminuem quem busca se informar sobre o funcionamento do jogo e seus aspectos mais técnicos. Infelizmente, isso acontece no esporte e em vários campos da sociedade. Vide as notícias falsas sobre a vacina contra a COVID-19.

Simplificar e explicar para que todos tenham acesso ao conhecimento. Utilizar a penetração que cada um tem junto ao público (seja ela de que tamanho for) para fazer com que todos desfrutem desse e de outros esportes maravilhosos. Claro que existem exceções, mas a imprensa esportiva no Brasil poderia desempenhar um papel mais digno do que apenar se preocupar com a repercussão nas redes sociais e em parecer o dono da razão. A discussão sobre a “Zona 14″ (algo que não é novo) mostra que ainda temos um longo caminho pela frente.

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FONTES DE PESQUISA:

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A Pirâmide Invertida – A história da tática no futebol (Jonathan Wilson, Editora Grande Área)
Zona 14: O que é? Importância? (Blog Futebol Pensado)
Como a “Zona 14” explica o crescimento de Neymar sob o comando de Thomas Tuchel (Blog Painel Tático, por Leonardo Miranda)

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